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- Cangaço - Por quê?
O sertão do nordeste
brasileiro tem sofrido poucas alterações ao longo do tempo, tanto no aspecto climático
quanto no social. Desde a segunda metade do século passado até o começo deste, a
contestação à pobreza e às péssimas condições de vida tem rendido movimentos
populares e muitas dores de cabeça para os donos do poder local e para a administração
oficial, em especial para o governo federal, geralmente omisso e fazendo seu jogo
político.
Várias rebeliões
aconteceram, causadas pela exploração da mão-de-obra do sertanejo desalojado de suas
terras pela seca e pelos grandes latifundiários, além de submetido a regimes de trabalho
praticamente escravo. Essas rebeliões disseminaram-se pelo agreste, alimentadas pelo
número cada vez maior de flagelados.
Movimentos populares como
Canudos, Contestado, Caldeirão e tantos outros surgiram com maior foco de resistência e
vigor no próprio nordeste. Foram símbolos da resistência ao poder centralizador dos
donos de terras que, numa análise realista, eram e são verdadeiros senhores feudais.
Sem outras alternativas e
sabendo que esse estado de coisas continuaria os grupos de rebeldes procuraram em si
mesmos os meios para tentar mudanças, instigados pelo analfabetismo, pela fome, pela
falta de futuro melhor, pelos anos sucessivos de seca, pelo descaso das autoridades e pela
participação, muitas vezes infeliz, da Igreja Católica.
O sertão é, por natureza,
adverso ao homem que ali tenta viver. O sertanejo nordestino e sua terra eram e continuam
sendo um só todo. Tirar a terra do sertanejo é matá-lo. Tirar o sertanejo da terra é
condená-lo a uma existência tão diferente do que lhe é próprio e natural que chega a
ser irreal.
Existem meios técnicos e
científicos para modificar o ambiente hostil em que vive o nordestino, para propiciar-lhe
melhores meios de subsistência. Mas, aplicados esses métodos e mudadas as
circunstâncias, provavelmente diminuiria ou acabaria a miséria, facilitando o
ajustamento do homem à região de maneira mais confortável, o que parece não interessar
aos que tiram proveito da situação vigente.
O flagelo das secas e a
cegueira dos homens que dominam o poder continuam, ainda hoje, a provocar a alma do homem
nordestino, deixando-o absurda e vergonhosamente entregue à própria sorte, vagando de
canto a canto do sertão até ser despejado nos centros urbanos mais prósperos,
tornando-se um marginal na verdadeira acepção do termo. Seres humanos que poderiam ser
bem mais produtivos em seu próprio meio natural, além de participantes mais ativos da
sociedade, são colocados à sua margem.
O fenômeno das secas
continua o mesmo há quatrocentos anos. O tratamento
recebido pelo homem nordestino não se diferencia hoje, em quase nada, daquele existente
por ocasião dos movimentos populares de rebelião contra os senhores feudais. Suas
chances de sobrevivência não dependem apenas dele, mas também, e principalmente, do que
lhe dão e do que lhe permitem ter.
Quando a morte passa a ser
sua companhia diária o homem reage. Alguns se entregam ao desespero, à passividade e ao
desalento. Outros, de índole mais agressiva, revoltam-se e pegam em armas. Os que não
têm nada querem alguma coisa; os que têm pouco querem mais, muito mais, pois o coronel
está séculos à sua frente.
A índole do nordestino é,
normalmente, humilde, pacífica e cordata. É um sujeito bonachão, alegre e divertido,
embora duro e rude em suas maneiras. Mas quando resolve dizer não, o nordestino vira
leão e grita sua revolta na cara da minoria opressora.
As causas do surgimento do
cangaço foram de natureza variada. A pobreza, a falta de esperanças e a revolta não
foram as únicas. Isso é mais que certo. Mas foram estas circunstâncias as mais
importantes para que começassem a surgir os cangaceiros. Muitos, como dissemos, eram
pequenos proprietários, mas mesmo assim tinham que se sujeitar aos coronéis. Do meio do
povo sertanejo rude e maltratado surgiram os cangaceiros mais convictos de que lutavam
pela sobrevivência.
- Se não me dão os meios
de conseguir, eu tomo. - pareciam dizer.
Virgolino Ferreira era um
trabalhador. Do tratamento duro e injusto que o trabalhador Virgolino Ferreira e sua
família receberam surgiu Lampião, o "Rei do Cangaço".
Lampião nunca foi um líder
de rebeliões ou um ídolo que servisse para a formação de camponeses revoltados.
Política nunca foi parte de sua vida. Mas as populações humilhadas e ofendidas viam em
Lampião um exemplo, naquele meio termo entre temer o que ele era e querer ser igual a
ele, quase a justificar sua existência de bandoleiro errante.
Lampião subverteu a ordem
imposta, mesmo que não fosse esse seu objetivo. Latifúndios que, durante décadas e até
mesmo séculos imaginavam-se intocáveis, sentiram o peso de sua presença e o terror das
consequências do não atendimento de suas exigências.
O caminho que Lampião
traçou nas sendas da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Ceará e Rio Grande
do Norte, hoje claramente observado nos mapas e na memória viva da história do cangaço,
praticamente não foi alterado nos últimos 60 anos. E pouco, talvez nada, será alterado
durante os próximos 60 anos ou mais.
Onde lutou Lampião ainda
estão, nos dias de hoje, as sobras da subserviência, a presença maciça da ignorância,
a exploração dos pequenos e dos humildes. E, de forma geral, também a indiferença
nacional continua a mesma.
A economia brasileira
progrediu, mas esse progresso deixou de lado a estrutura caótica e ultrapassada das
distâncias sertanejas.
Existem dois países neste
nosso Brasil: um mantém a mesma ordem, a mesma estrutura e os mesmos vícios do passado;
o outro caminha para o progresso, modificando-se e modernizando-se, seguindo os modelos
apresentados por outras nações.
No norte-nordeste até a
imagem física das localidades permanece quase a mesma do século passado. Quase nada
mudou desde os tempos em que Lampião decidiu que não seria mais o trabalhador Virgolino
Ferreira, já que não valia a pena. E o pouco de paciência que tivera se acabara por
causa dos abusos.
Se quase nada mudou, se as
circunstâncias continuam as mesmas, podemos concluir que o terreno que gerou Lampião
ainda está lá, esperando novas sementes. Se existe alguma germinando, neste exato
momento, é difícil saber.
Talvez alguns prefiram não
pensar a respeito.
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